"Entre as vertentes dos rios Choró e Canindé e as cabeceiras do Pacoti, ergue-se a uma altitude de mil metros uma vasta montanha, eriçada de largos espigões e recortada de longos vales, donde emanam límpidos correntes, que nas quebradas se vão reunindo em rios perenes e torrenciais.
No princípio do século XIX, era a serra de Baturité inteiramente coberta de mata virgem, espessa, úmida e sombria; e formava, em meio da vasta e ondulada planura dos sertões, ressequidos e desnudos durante os meses de estio, um enorme maciço de luxuriante verdura e delicioso frescor, que gradativamente baixava das alturas dos céus, qual terra da promissão, oferecida como uma recompensa de Deus aos cearenses heróicos e sofredores.
As altas e frias cumeadas, retendo e refrigerando as nuvens procedentes do mar, provocavam freqüentes chuvas, que nos meses de inverno se tornavam amiudadas e impertinentes, e que não faltavam nem mesmo nos anos de seca rigorosa no sertão.
A princípio era a serra povoada pelos selvagens Canindés e Genipapos, que perseguidos e dominados, foram por fim reunidos no pé da serra na aldeia de índios de Monte-Mor Novo da América, onde se lhes concedeu a posse em comum de uma faixa de terra sobre o rio Aracoiaba, no lugar que por isso ficou sendo chamado Comum."
(Esperidião de Queiroz Lima - Antiga Família do Sertão)
BATURITÉ é uma palavra de origem indígena
(ibitira/batura = monte de terra ou serra + eté = principal, a verdadeira ou real)
que, em Tupi Guarani, tem o sugestivo significado de
SERRA VERDADEIRA, ou ainda,
SERRA MAJESTOSA,
SERRA MELHOR QUE AS OUTRAS...
Na verdade, a tradução desse topônimo constitui um pleonasmo, uma vez que BATURITÉ já significa "SERRA", e ao enunciarmos: "SERRA DE BATURITÉ" - estamos nos referindo à
"SERRA de Serra Verdadeira".
Mas é exatamente essa a força expressionista usada pelos índios que habitavam aquela região, quando mencionavam algo em relação a esta nossa SERRA em especial, ou quando a comparavam à outras serras do Ceará. Ou seja, para eles, esta é uma Serra Majestosa, uma Serra por excelência.
(ibitira/batura = monte de terra ou serra + eté = principal, a verdadeira ou real)
que, em Tupi Guarani, tem o sugestivo significado de
SERRA VERDADEIRA, ou ainda,
SERRA MAJESTOSA,
SERRA MELHOR QUE AS OUTRAS...
Na verdade, a tradução desse topônimo constitui um pleonasmo, uma vez que BATURITÉ já significa "SERRA", e ao enunciarmos: "SERRA DE BATURITÉ" - estamos nos referindo à
"SERRA de Serra Verdadeira".
Mas é exatamente essa a força expressionista usada pelos índios que habitavam aquela região, quando mencionavam algo em relação a esta nossa SERRA em especial, ou quando a comparavam à outras serras do Ceará. Ou seja, para eles, esta é uma Serra Majestosa, uma Serra por excelência.
Situada na região centro-norte do estado, destaca-se por seu clima ameno e abundância de água, o que lhe proporcionou, no final do século XIX e início do século XX, um período de grande prosperidade econômica e social.
As Primeiras Propriedades:
No início do século XIX, a SERRA de BATURITÉ passou a ser muito procurada pelos fazendeiros do sertão de Quixadá, de Quixeramobim, do Pirangi, do Canindé e da ribeira do Jaguaribe. Na estiagem dos verões prolongados e quentes, iam em busca de alimento, do refrigério daquele clima ameno e saudável. Era grande a penúria que sofriam com suas famílias, sob o sol escaldante do sertão nos calamitosos anos de seca. Por essa razão, eles iam, sobretudo, em busca das terras férteis e molhadas, apropriadas para o cultivo do milho, do feijão, da batata doce, do jerimum e da mandioca.
"Até 1820, pouco progresso houve no avanço serra acima. Depois desta data, no entanto, aconteceu uma verdadeira corrida, especialmente após a introdução do café, em 1824, coincidindo com a chegada de algumas famílias transplantadas de Quixadá para o coração da serra. Queirozes e Holandas foram estes desbravadores destemidos, homens fortes e saudáveis. A tradição popular, até o começo do presente século guardava a lembrança da tenacidade e energia desses homens corajosos e, sobretudo, portadores de um verdadeiro espírito de pioneirismo."
(Vinicius de Barros leal - História de Baturité, 1981 - pág. 81)
Pelo ano de 1825, muitos fazendeiros vindos do sertão subiam as ladeiras íngremes da Serra, acompanhados da família e dos escravos, levando com eles os recursos que dispunham em dinheiro, algumas vacas e cabras leiteiras, e os animais de carga necessários para conduzir o comboio.
As primeiras propriedades que se formaram na Serra, foram tomadas por posse ou adquiridas de antigos exploradores que, vendo ali a oportunidade de um bom negócio, abriam picadas na mata virgem determinando de modo rudimentar as extremas de uns pequenos "roçados" para venderem aos fazendeiros.
De posse da terra, os bravos e destemidos sertanejos derribavam a mata preservando as toras de madeira mais fáceis de transportar a fim de serem aproveitadas nas construções de casas provisórias, feitas de taipa e cobertas com palhas (folhas) de palmeira de babaçu, abundantes na Serra de Baturité. O restante da madeira era aproveitada para lenha ou queimada em coivaras.
"Ali, nos anos mais terríveis de seca, quando o sertão todo está pegando fogo, as nascentes continuam dando água, o verde não murcha. A Serra é o refúgio do flagelado, e não sei de sertanejo daquelas ribeiras que não tenha, pelo menos num ano, escapado vida e fazenda, nos vales frescos de Guaramiranga ou Pacoti."
Rachel de Queiroz
Rachel de Queiroz
Entre a Serra e o Sertão
Os fazendeiros passaram assim, a viver entre a SERRA e o SERTÃO. Ficavam na Serra durante os períodos de estiagem ou seca. Mas ao prenúncio das primeiras chuvas de inverno regressavam às suas fazendas, onde eles teriam em abundância todos os legumes e o algodão, além da fartura da carne, do leite e de todos os seus derivados.
“Acima de tudo, gostam desta terra velha, ingrata, seca, doída, pobre; e nisso estou com eles, e só por cima dela temos gosto de tirar os anos de vida, só debaixo dela nos saberá bem o descanso, depois da morte”
Rachel de Queiroz.
Sem falar que o sertão era a terra propícia para se criar, o que lhes constituía a ocupação predileta e a riqueza de mais fácil comércio. Assim, na estação chuvosa, os fazendeiros permaneciam em suas fazendas no sertão. Na época de estiagem, de verão ou de seca, subiam a Serra e aí ficavam em seus sítios. A história da Serra foi construída assim...
Até 1830 ainda existia índio no sopé da Serra, sobretudo em Baturité.
Houve em 1844, um inverno muito escasso que deixou os sertanejos sem nenhuma reserva alimentar. Veio então a terrível SECA de 1845 e a solução encontrada foi a retirada geral das famílias sertanejas que se deslocaram, principalmente para a Serra de Baturité.
Muitos sertanejos ali se estabeleceram e tomaram posse de suas terras que, a princípio, eram pequenos roçados.
Somente a partir de 1855 foi sancionada uma LEI IMPERIAL conhecida como Lei 601, ordenando que fossem cadastrados todos os sítios e propriedades da Serra de Baturité. Esses registros foram feitos através dos vigários das paróquias, tendo em vista que, eram eles que visitavam as famílias, realizavam os casamentos e os batizados, ministravam a benção dos enfermos, e conheciam, portanto, todas as pessoas que ali nasciam e residiam.
Nessa época, eles peregrinavam de casa em casa montados em burros ou cavalos. Percorriam todos os recantos da Serra e recebiam como gratificação do governo imperial, a quantia de “um vintém” a cada registro apresentado.
O CAFÉ - sua origem e história
O cafeeiro (Coffea sp.) é um arbusto da família Rubiaceae e do gênero Coffea, do qual se conhece hoje mais de cem espécies.
A história do café começou no século IX. Originário da província de Kaffa nas terras altas da Etiópia, país do continente africano, passou aos persas e daí aos árabes, que o cultivaram durante anos e só o divulgaram como bebida a partir do século XV. Espalhou-se então pelo mundo e chegou ao Egito, depois à Europa e veio para a América do Sul, através da Guiana Francesa. Holandeses e franceses, a exemplo dos povos árabes, tentaram manter o monopólio do cultivo do café. Mas em 1727, o jovem oficial brasileiro Francisco de Mello Palheta trouxe umas sementes que ganhou “sorrateiramente” de Madame d’Orvilliers, esposa do governador da Guiana Francesa e plantou-as no Pará.
A partir dessas sementes haveria de crescer o poderoso Império Brasileiro do CAFÉ– um episódio bem apropriado para a história deste grão tão sedutor.
A palavra "CAFÉ" não deriva de Kaffa, região africana onde foram encontradas as primeiras plantas da espécie. Os árabes foram os primeiros a cultivarem o cafeeiro, daí o nome científico: Coffea arábica – café-arábico – uma das mais importantes espécies de café, cujos grãos secos, depois de torrados e moídos se transformavam em uma bebida que eles chamavam de "qahwa", que significa vinho, por esse motivo era conhecido como “vinho da Arábia”.
O CAFÉ na Serra de Baturité
Do Pará, a cultura passou para o Maranhão e, por volta de 1760, outras sementes foram levadas para o Rio de Janeiro por João Alberto Castelo Branco, onde se espalhou pela Baixada Fluminense e posteriormente pelo Vale do Paraíba.
O CAFÉ só foi introduzido na SERRA de BATURITÉ a partir de 1822, por Antônio Pereira de Queiroz Sobrinho. Ele plantou umas sementes trazidas do Cariri no sítio Munguaípe, colhidas em cafeeiros de Pernambuco. Dois anos depois, em 1824, Manoel Felippe Pereira Castello Branco (pai do coronel João Pereira Castello Branco, dono do Sítio São Luis, em Pacoti) trouxe umas sementes adquiridas no Pará, e plantou-as no “sítio Bagaço”, em Mulungu.
Durante mais de cem anos o café ocupou importante papel na história da economia cearense, mas a borracha, produzida pela maniçobeira (Manihot glaziovii, Mull.), também movimentou durante um curto e significativo período, não só a economia da Serra de Baturité, mas de todo o estado do Ceará.
As plantações de café na Serra, ao contrário do que acontecia nas regiões centro e sul do Brasil, não estavam só nas mãos dos ricos fazendeiros. Boa parte dos roçados pertencia a pequenos proprietários, parceiros ou agregados. A maioria dos sítios foi assim formada a partir desses pequenos “roçados de café”, e muitos proprietários de terra adquiriram plantações extras de café numa escritura à parte.
Os roçados eram vendidos separadamente, como se pode ver no detalhe da escritura de compra e venda de um cefeeiral adquirido pelo Coronel João Pereira Castello Branco, datada de 16/03/1878:
Havia até mesmo um costume bem curioso de se dar nomes a esses roçados.
No Sítio São Luis, eles têm nomes próprios, talvez dos seus antigos donos (Antônio Anjo, José Amaro, Casciano, Chico do Birro), outros têm nomes de santos (Santo Antonio, Santa Rosa, Sant’Ana, São Miguel), de árvores (Favinha, Gameleira, Pau Ferro, Pau d’Arco, Ingazeira, Quina-quina), de aves (Uru, Graúna, Alto da Juriti), e muitos outros: Purgatório, Céu, Mocó de Pena, Saco da Roda, Alto Redondo, Gama, Pagão, Pau Casado, etc.
Muitos documentos dessa época, como esse do Casciano, descrevem:
“um roçado com quatro mil pés de cafeeiros, pouco mais ou menos, que possuímos no Sítio São Luis, propriedade do Sr. João Pereira Castello Branco...”
Sendo uma cultura permanente, o CAFÉ era cultivado na Serra como o algodão arbóreo (algodão mocó), era cultivado no sertão. E ali permanecia, mesmo depois da colheita das culturas temporárias (milho, feijão e mandioca) exigindo apenas alguns cuidados como a roçagem que era feita pelo menos uma vez ao ano.
O café só prosperou economicamente na Serra, a partir de 1845, quando boa parte das famílias de fazendeiros vindos do sertão tangidos pela seca, ali se fixou.
Entre 1845 e 1877 não se registrou nenhuma seca no Ceará, foi um período de muita fartura e desenvolvimento na história da Serra. Os primeiros roçados de café plantados a céu aberto prosperaram por cinco décadas com belas floradas e grandes colheitas.
Há relatos de que a época da floração do café era realmente um espetáculo de rara beleza, não só pelo perfume que emanava das flores que cobriam as encostas dos morros, mas também pelo contraste do verde das matas com a brancura das flores (ver poemas no final do texto).
Para escoar a produção cafeeira, foi construída a primeira estrada de ferro do Ceará, saindo de Fortaleza pela Avenida Tristão Gonçalves e seguindo até Baturité. Iniciada em 20/02/1870 foi inaugurada em 1882
A razão dessa ferrovia direcionada especificamente a Baturité foi por ser aquele maciço, não só o manancial do Ceará pela fartura de frutas e hortaliças em geral, mas, sobretudo pelo CAFÉ ali produzido.
Até então, todo o transporte de legumes, hortaliças, frutas, algodão e café da região, era feito em lombos de animais que seguiam em comboios para o Porto de Fortaleza. E boa parte do café produzido na Serra era exportado principalmente para Portugal, França e Alemanha. Por esse motivo, Baturité chegou a sediar dois consulados, um da França e outro de Portugal. O primeiro cônsul português foi o Dr. Bernardino Proença (origem da família Proença no Ceará), proprietário de duas indústrias em Baturité, uma de cigarros e outra de bombons. Existiam ainda as usinas de algodão e de milho. Muitos negócios surgiram e prosperaram no entorno dessa riqueza gerada a partir da cultura do café.
Além do comércio que movimentava os fazendeiros e proprietários de sítios, muitas personalidades se destacaram ali no mundo cultural: Benigno Pereira lançou dois jornais em Guaramiranga, no início do século IXX, os quais eram impressos em Baturité. Ainda em Pacoti e Guaramiranga, respectivamente, Luis Pimenta e Dona Lili se destacavam como teatrólogos talentosos, apresentando os “dramas” (teatro popular que retrata fábulas ou fatos pitorescos), que marcavam as festas da Igreja e outras datas festivas como o encerramento da colheita do café.
Meu
pai relatava que as CAVALHADAS também faziam parte das comemorações
da Igreja, quando a população se organizava em dois partidos: o AZUL e
o ENCARNADO (vermelho). Cada partido escolhia sua RAINHA, incumbida
de conseguir o maior número de prendas e uma boa soma em dinheiro, arrecadados
junto à população.
Durante
o “novenário” que precedia as festividades natalinas ou a festa do santo
padroeiro, havia as QUERMESSES, com barracas de comidas e muitos adereços
expostos à venda. Essas noites festivas findavam sempre com um animado e
concorrido LEILÃO, cujas prendas mais valiosas eram ofertadas sobretudo
pelos proprietários de sítios da Serra e comerciantes locais.
Entre as prendas mais disputadas havia desde os bolos preparados pelas sinhazinhas, moças casadouras, que se dedicavam igualmente a outros mimos feitos com bastante antecedência, como alguns lenços bordados em "ponto de crivo".
É interessante ressaltar que, uma forma de homenagear um amigo era arrematar a prenda doada por ele e lhe presentear em seguida.
Entre as prendas mais disputadas havia desde os bolos preparados pelas sinhazinhas, moças casadouras, que se dedicavam igualmente a outros mimos feitos com bastante antecedência, como alguns lenços bordados em "ponto de crivo".
É interessante ressaltar que, uma forma de homenagear um amigo era arrematar a prenda doada por ele e lhe presentear em seguida.
Assim,
algumas prendas ofertadas pelas moças donzelas, deveriam ser arrematadas pelos
seus futuros pretendentes e, em seguida, gentilmente oferecidas às essas senhorinhas,
donas da prenda, entre generosos galanteios, motivando assim uma proximidade
que poderia terminar em casamento.
(Ver capítulo “BODAS de SANGUE”:
(Ver capítulo “BODAS de SANGUE”:
http://familiaqueirozbarreira.blogspot.com.br/2011_01_09_archive.html)
Havia ainda alguns quitutes como galinha e leitão assados, entre inúmeros tipos de prendas "vivas" bem interessantes: galinha cevada, peru, capote, novilha de cabra, porco, carneiro, boi ou garrote gordo.
Havia ainda alguns quitutes como galinha e leitão assados, entre inúmeros tipos de prendas "vivas" bem interessantes: galinha cevada, peru, capote, novilha de cabra, porco, carneiro, boi ou garrote gordo.
1 Alqueire (= 128 litros de café), 1 terça (= 42,6 litros de café) e 1 Quarta (= 32 litros de café).
Era o português Manoel José D’Oliveira Figueiredo, da firma Figueiredo & Rocha (proprietária do sítio Macapá), dono do SÍTIO BOM SUCESSO, localizado às margens da estrada que liga Guaramiranga a Pacoti.
O processo de colheita e beneficiamento do café era feito de maneira muito rudimentar. Os grãos maduros depois de colhidos eram levados para secar nas faxinas, um local plano e a céu aberto, com piso de tijolo ou simples terreiros de terra batida. Depois de secos, os grãos eram pilados (descascados) nos toscos pilões entalhados em troncos de velhas Aroeiras ou de Pau Ferro. No pilão eram socados com mão de pilão e peneirados em urupembas de taquara, tudo feito artesanalmente.
Com o tempo surgiram os “rodeiros”, uma engenhoca muito simples movida por tração animal. O velho Figueiredo possuía em sua propriedade um lugar estratégico onde montou um rodeiro bem estruturado movido pela força hidráulica.
Imagens do antigo Rodeiro da Fazenda Floresta,
em Guaramiranga - CE,
movido por tração animal.
em Guaramiranga - CE,
movido por tração animal.
Como a produção dos grãos crescia e o processo de pilação era ainda muito lento, muitos cafeicultores procuravam o Coronel Figueiredo pra fazer o beneficiamento dos grãos em seu rodeiro. O café já começava a se amontoar nos armazéns da Fazenda Bom Sucesso. Enquanto isso os produtores e comerciantes cobravam dele uma garantia de que teriam de volta o seu CAFÉ beneficiado ou o dinheiro equivalente. Foi quando o velho português, empreendedor que era, teve a brilhante ideia de mandar cunhar em Portugal umas moedas com as medidas equivalentes aos litros de café em grão. Essas moedas muito bem cunhadas em bronze, datam de 1895 e tinham além do nome completo, o endereço do seu proprietário. Quem deixava o café pra ser pilado recebia na hora as moedas equivalentes como garantia. Foi assim que elas começaram a circular de mão em mão, por toda a Serra e depois pelo sertão de Quixadá, de Quixeramobim, de Canindé, e de regiões vizinhas. Começaram a ser usadas com o mesmo valor do dinheiro vigente, tendo como lastro o CAFÉ e a garantia do velho comerciante. Os antigos moradores da Serra relatavam que, com essas moedas, era possível se comprar gêneros, roupas e utensílios diversos pelo sertão afora, porque o CAFÉ da Serra de Baturité era desejado por todos os estabelecimentos comerciais do estado. Os mais velhos contavam que essas moedas teriam circulado pelo sertão do Cariri, atravessaram as fronteiras do estado e chegaram até o Exu no sertão de Pernambuco.
Com a falência da cultura cafeeira na Serra, o Coronel Figueiredo vendeu suas propriedades para honrar todas as moedas que lhe foram apresentadas.
E numa noite memorável reuniu-se com os amigos no antigo sobrado do Sítio Pau d'Alho, na entrada de Pacoti.
Sobrado do Sítio Pau d'Alho,
Construído no século XIX pelo Coronel Epifânio Ferreira Lima.
Após o jantar onde relembrou sua trajetória de vida, presenteou as moedas ao amigo anfitrião, Aprígio Alves Barreira Cravo, foi pra casa e suicidou-se. Essa tragédia ocorreu em 1904, de acordo com pesquisas do Professor e Historiador Levi Jucá.
Manoel José D’Oliveira Figueiredo foi um grande empreendedor à frente de seu tempo. Construiu na Fazenda Bom Sucesso um rodeiro movido por força hidráulica, talvez inspirado em antigos rodeiros de trigo da Índia que utilizavam tração animal. Idealizou e mandou cunhar em Portugal suas próprias moedas e teve a ousadia de ser o primeiro empresário cearense, pois o registro de número um da Junta Comercial do Estado do Ceará pertence a empresas de sua propriedade.
Quase um século depois as moedas do velho português tiveram sua história resgatada, publicada em vários jornais do país e registrada no Boletim N° 21 da Sociedade Numismática Brasileira.
Hoje elas são consideradas pelos colecionadores, as moedas particulares brasileiras mais bonitas e mais valiosas.
A Aristocracia Rural na Serra de Baturité
Toda essa riqueza gerada pela cultura cafeeira proporcionou a formação de uma verdadeira Aristocracia Rural na Serra de Baturité.
Algumas dessas casas, típicas da era colonial, tinham mobílias austríacas, poltronas e cadeiras entalhadas, estilo Luis XV. Consolos com tampos em mármore de Carrara, lavabos franceses e lampiões com base em jarra de opalina francesa. Os candelabros de prata, os espelhos e lustres em cristal da Bohemia, adornavam as salas nas noites de saraus onde não podiam faltar os famosos pianos Dörnner importados da Alemanha.
Dentro da pequena Vila de Guaramiranga existiam sete pianos Dörnner. A louça inglesa e os talheres de prata eram postos sobre as mesas fartas, forradas com toalhas de fino linho e bordados da Ilha da Madeira. O vinho do Porto e a uva moscatel acompanhavam as iguarias servidas nos banquetes com um repasto de outros produtos importados da Europa. Tudo isso era transportado de trem através do primeiro caminho de ferro do Ceará, desde o porto de Fortaleza até a estação de Baturité. Dali seguiam Serra acima, em lombos de animais ou nos braços dos escravos, pelas estreitas e sinuosas veredas lamacentas e escorregadias, até o seu destino final.
Não havia, no entanto, a ostentação do luxo que predominava entre as mansões dos barões de café no sul e sudeste do país. Eram típicas casas de fazendeiros, homens simples, acostumados a conviver com a rudeza das secas e à escassez do sertão nordestino.
A cultura do café na Serra aliada à intensa produção de algodão no sertão marcou assim um período de muita fartura e abastança na vida desses fazendeiros cearenses.
Homens de vida pacata, que trabalhavam com afinco para conseguirem condições financeiras favoráveis nos negócios. No entanto, o maior investimento que faziam era sobretudo na educação dos filhos. Muitos deles seguiam ainda bem jovens para a Faculdade de Direito na cidade de Recife, ou eram mandados ao Rio de Janeiro cursar Medicina. Alguns iam até mesmo para a Europa, de onde só voltavam para uma rápida temporada de férias ou com o diploma na mão.
Formava-se assim a primeira geração de "fazendeiros doutores", filhos e netos de coronéis!
Foi assim com dona Rachel de Queiroz Lima (avó da Rachel de Queiroz, de quem a escritora cearense herdou o nome), e sogra do Coronel Chichio (Francisco de Mattos Brito), casado com sua filha Adelaide Queiroz, meus bisavós maternos.
Geração de Fazendeiros - Histórias de Família
Dona Rachel de Queiroz Lima, era filha única dos fundadores do Sítio Guaramiranga e dona da rica Fazenda Califórnia, em Quixadá (Ver tópico A CALIFÓRNIA, no Blog: http://familiaqueirozbarreira.blogspot.com.br).
Contava quarenta e três anos de idade quando seu marido, o Dr. Arcelino de Queiroz Lima, bacharel em Direito, faleceu em 19/11/1895, deixando-lhe viúva com dez filhos, “sendo oito menores, inclusive o último com seis meses de idade, – assumiu a administração de seus bens, fez seguirem para o Rio de Janeiro o filho maior João Baptista, que recomeçando os estudos matriculou-se na Faculdade de Medicina, e Esperidião*, que foi fazer os preparatórios, para o Colégio Abílio. Os outros filhos continuaram os estudos em Colégios locais, sendo mandados para o Rio à medida que iniciavam o curso secundário.” Essa resolução foi criticada por parentes e amigos “que lhe aconselharam a criar os filhos, trabalhando na fazenda, dando-lhes, para começarem a vida, o dinheiro que teriam de gastar nos estudos.” Ao que dona Rachel respondeu dizendo que “as fazendas divididas em dez partes e sujeitas às vicissitude das secas, não garantiriam a prosperidade futura dos filhos, que corriam assim o risco de ficar pobres e ignorantes, como freqüentemente acontecia.” (Esperidião de Queiroz Lima – Antiga Família do Sertão)
José Marinho Falcão de Goes, meu avô paterno, tinha 17 anos de idade quando embarcou para a cidade de Louvain, na Bélgica, em 1893, juntamente com vários outros quixadaenses, entre eles o Dr. Eurico Olímpio e o professor Júlio Holanda, seu cunhado. Estudou no colégio “La Trè Santinitré”, dirigido pelos padres Josefitas, onde permaneceu até 1897, quando retornou à Quixadá com o diploma de Engenheiro Agrônomo.
Assim formou-se uma segunda geração de fazendeiros, mais culta e mais exigente.
A decadência do Café e o CICLO da BORRACHA na Serra de Baturité
Depois de decorridos cinqüenta anos, a produção cafeeira da Serra começou a declinar. A terra cansada, o solo desnudo e íngreme, já não retinha os nutrientes necessários para manter os cafezais que foram aos poucos definhando enquanto toda a economia serrana perecia. Nos roçados abandonados nascia em profusão uma nova planta, a MANIÇOBA (Manihot glaziovii, Muell.Arg), uma euphorbiaceae, parente silvestre da mandioca, produtora de LÁTEX, também chamada maniçobeira, nativa das serras cearenses. É ainda um bio-indicador de mata secundária, ou seja, é típica de regiões degradadas, onde a mata original foi destruída. Por essa época, a borracha era o carro-chefe da economia amazonense (século XIX).
Os cafeicultores falidos buscavam alento na alvissareira ideia de produzir borracha natural a partir da nova planta que surgia abundantemente nas falhas dos roçados. A possibilidade de se extrair e comercializar um látex semelhante ao da seringueira, no maciço de Baturité, gerou uma grande expectativa também nos investidores estrangeiros que logo apareceram. Entre eles, o Banco de Londres (Casa Inglesa) e a Casa Boris (Boris, Frères et Cie.).
No entanto, desde 1876 milhares de mudas de seringueiras eram levadas da Amazônia para o sudeste da Ásia, onde se adaptaram muito bem e logo começaram a produzir um látex de excelente qualidade, muito superior ao que era produzido ali. Assim, ainda no início do século XX começou a decadência do nosso breve “CICLO da BORRACHA”. A concorrência era desigual com a borracha dos asiáticos, muito superior e mais barata que a nossa.
Esses dois grandes centros capitalistas sediados em Fortaleza, aproveitando-se da falência dos cafeicultores da Serra, adquiriram deles muitas propriedades em todo o Maciço de Baturité. Vislumbravam uma oportunidade única de grandes lucros com o advento da borracha que seria extraída naquela região, aliada à facilidade do transporte através da estrada de ferro até o porto de Fortaleza. Mas logradas as expectativas, apressaram-se em vender os sítios a preços módicos e financiados a longo prazo. Por essa razão, muitas propriedades da Serra, inclusive o Sítio São Luis, passaram pelas mãos desses investidores, principalmente dos franceses, da CASA BORIS.
O SEGUNDO CICLO do CAFÉ na Serra de Baturité
Quando já se julgava decretada a extinção, pelo esgotamento, da cultura cafeeira na Serra de Baturité, surgiu o remédio salvador: a arborização dos cafezais pelas ingazeiras e pelo camunzé. A sombra dessas árvores não só minimizava as intempéries do sol como cobria o solo com humosa camada de folhas decompostas, fertilizando e restituindo à terra desgastada e estéril a seiva necessária para reviver os velhos cafeeiros que renovaram e floriram. Foi uma verdadeira ressurreição. Antigos roçados plantados no Sítio Guaramiranga em torno de 1849, foram replantados e arborizados em 1904, pelo Coronel Chichio (meu bisavô materno), como relata o Dr. Esperidião de Queiroz Lima, seu cunhado e autor do Livro Antiga Família do Sertão. Foi um novo ciclo do CAFÉ na Serra de Baturité:
“Uma coisa, porém, a Serra perdeu irreparavelmente: a beleza panorâmica dos ondulados cafezais floridos, que enchia de poesia o coração dos amantes e de amor a alma dos poetas. O toldo sombrio e protetor formado pela arborização, se economicamente salvou a riqueza da Serra, pelo lado artístico estragou-lhe completamente a beleza. Mas que seria da nossa Serra, sem as leguminosas salvadoras? Talvez uma terra corroída pelas intempéries, desnuda, gretada e estéril.”
(Esperidião de Queiroz Lima – Antiga Família do Sertão)
A Serra tendo se tornado a principal região produtora de café do Ceará, detinha 2% da produção brasileira, competindo com todo o café produzido no sul do país. Famoso por seu aroma e sabor: “é o melhor café do mundo”. (1ª Edição Folha de São Paulo, 17/10/1959). Há relatos de que o café produzido no Maciço de Baturité era um dos mais apreciados nas cafeterias francesas. E de tal forma a nossa produção cafeeira incomodou os sulistas que, por volta de 1960, quando o país teve uma super safra de café, o IBC – Instituto Brasileiro do Café chegou à Serra e começou a divulgar um novo tipo que produziria melhor e mais rápido do que o café já aclimatado ali naquela região. O mesmo IBC oferecia ainda uma boa quantia em dinheiro para que se erradicassem as antigas plantações e no lugar delas se plantassem as novas mudas que eles entregavam gratuitamente, com um relevante detalhe: os proprietários que se dispusessem a arrancar e refazer seus velhos roçados, recebiam em moeda corrente, a título de incentivo, alem das mudas necessárias, o equivalente a “cinco vezes” o valor da terra nua. Ou seja, seria vender a terra por um valor igual a cinco vezes o seu real valor, e ainda continuar dono dela. Não só muitos roçados foram arrancados, destruídos e queimados, como grandes áreas de mata foram derrubadas para que se plantassem esse novo café que não carecia de sombreamento, conforme eles asseguravam.
Meus avós maternos:
Arcelino (Queiroz) de Mattos Brito
e Noemi Lopes de Mattos Brito,
proprietários do Sítio BREJO,
em Guaramiranga (CE).
A Serra de Baturité e o Sítio São Luis
A Serra de Baturité compõe uma paisagem de exceção no contexto geo ambiental do semi-árido cearense. Pela sua altitude e localização, próxima ao litoral, recebe os ventos oriundos do Oceano Atlântico, o que lhe propicia a formação de ambiente úmido e clima ameno, mesmo durante o verão.
Tudo isso aliado à pequena distância que a separa da capital do estado, vem aumentando o interesse e a procura pelas terras da Serra, que desde o início de sua ocupação com as primeiras lavouras vem sofrendo um crescente processo de degradação. A comercialização de terrenos e sítios, sobretudo nas áreas onde a topografia é mais acidentada, evidencia que, tanto a prática da agricultura como a especulação imobiliária têm causado drásticas e irreversíveis transformações em seu ecossistema.
“Infelizmente, esta bela floresta está muito reduzida, quase completamente destruída pelas exigências agrícolas; por toda parte foi substituída pelos cafezais e canaviais ou pelas pobres capoeiras que encimam as colinas ou as encostas desabrigadas. Todavia ainda há amostras da mata primitiva, honesta e deliberadamente conservada em escassos sítios, senão fora de acesso econômico dos lavradores, isto é, grotas profundas, nos recantos onde o trabalho agrícola se torna perigoso e difícil. Mesmo onde a mata foi destruída, grandes árvores ainda restam, aqui e ali, testemunhando a pujança das velhas florestas”.
(Thomaz Pompeu Sobrinho, em 1938)
Para regulamentar e fiscalizar o uso do solo na região criou-se uma unidade de conservação: a APA (Área de Proteção Ambiental) do Maciço de Baturité – a primeira e mais extensa Área de Preservação Ambiental criada pelo Governo do Estado do Ceará – através do Decreto estadual Nº 20.956, de 18/09/1990, retificado pelo Decreto Nº 27.290, de 15/12/2003. Abrangendo uma área em torno de 32.690 hectares, delimitada pela cota de 600 metros acima do nível do mar, teve como principal objetivo intervir no uso desordenado dos recursos naturais que aceleram o processo de degradação ambiental.
O Maciço de Baturité, devido a esse isolamento físico ocasionado pelas características climáticas e formações geológicas, próprias da Serra, detém em seu território a existência de uma grande variedade de espécies, animal e vegetal, típicas da Floresta Amazônica e da Mata Atlântica. Guaramiranga e Pacoti por se encontrarem numa altitude superior à cota de 600 metros, são os dois únicos municípios que têm seus territórios inteiramente inseridos na APA.
Mas com a falência dos cafeicultores, muitos dos antigos proprietários venderam ou abandonaram seus sítios e migraram para outras cidades, a maioria para Fortaleza.
Aqui cabem as palavras do Dr. Esperidião de Queiroz Lima, escritas no Proêmio de seu livro, Antiga Família do Sertão, editado em 1946:
“Com a migração das grandes famílias rurais para as cidades, surgem em terras distantes e com nomes diversos, novas gerações, que não mais encontram, na agitação da vida moderna, nem oportunidade nem tempo de ouvir dos avós as singelas histórias de seus remotos antepassados, como eram antigamente contadas nos costumeiros serões domésticos nas fazendas; e vão assim perdendo o gosto e o interesse pelas questões de linhagens, alheando-se dos parentes, que pouco a pouco se tornam meros desconhecidos.
Em verdade, essas gerações novas não sentem mais o entranhado amor que prendia à terra as antigas famílias sertanejas, enraizadas na propriedade agrícola, que lhes garantia a estabilidade, o conforto e a independência, de que tanto se orgulhavam. Separando-se da terra, desligam-se insensivelmente dos laços de parentesco e de amizade, que prendem entre si os descendentes dos mesmos troncos ancestrais, irmanados pelo mesmo sangue e pelo culto das mesmas tradições...”
Desde então a Serra vem passando por profundas mudanças. A nobre cultura do café, exatamente como aconteceu no sul do país, enquanto enriqueceu a muitos empobreceu a outros, como num círculo vicioso.
A cafeicultura aos poucos foi sendo abandonada, sobretudo porque se tornou caro e inviável todo o procedimento desde o plantio, colheita, secagem, pilagem até a comercialização do produto final. Aliado a tudo isso, surgiram as pragas que se proliferavam e dizimaram muitos cafezais em toda a Serra. A mão de obra especializada ficou escassa e com o passar dos anos, esses cafezais foram sendo substituídos por outras culturas: bananeiras, hortaliças e ainda a cultura dos chuchus plantados em forma de latadas (uma espécie de caramanchão). O município de Pacoti é hoje o maior produtor de chuchu do nordeste. Os engenhos de cana, produtores de aguardente e rapadura começaram a parar pela falta da lenha. Era vital preservar as nossas matas. Assim os baixios anteriormente ocupados com as plantações de cana-de-açúcar deram lugar às hortaliças mais nobres (alface, brócolis, couve-flor, ervilha, acelga, espinafre, repolho, alho-poró, etc.) de produção muito mais rápida e fácil comercialização. Grandes e pequenas floriculturas começaram a surgir na Serra como um negócio alvissareiro.
O Sítio São Luis ainda mantém preservados antigos roçados de café, alguns com mais de cem anos, mas entre as suas principais culturas estão as plantações de banana, de chuchu e de hortaliças.
A especulação imobiliária, no entanto, aliada a aculturação do povo, desinformado, carente de emprego e de outras atividades ligadas à terra e à agricultura, teve conseqüências drásticas com a efervescência turística que acontece principalmente dentro dos municípios de Pacoti, Guaramiranga e Mulungu. As grandes propriedades são hoje retalhadas em pequenos sítios ou transformadas em luxuosas chácaras de veraneio, verdadeiras mansões, grandes condomínios, construções suntuosas a cada curva da estrada.
Com isso, as delimitações das antigas propriedades que antes eram feitas por árvores nativas (pau d’arco, aroeira, pau ferro, mangueiras, jaqueiras, etc.) deram lugar às cercas de 12 fios de arame farpado com estacas de concreto, o que vai de encontro a um dos itens que rege a cartilha da SEMACE (Secretaria do Meio Ambiente do Estado do Ceará), ou seja, “não interferir no funcionamento dos refúgios ecológicos”. O Progresso custa caro! E o preço alto de tudo isso nossa descendência vai pagar... Novos acessos, estradas asfaltadas, o barulho das "motos"... Tudo isso interfere profundamente no ecossistema. Cercas construídas nos limites das terras sem nenhum critério impossibilitam completamente o livre trânsito dos animais silvestres, responsáveis em grande parte pela disseminação da nossa flora e fauna... E que apesar de todas as adversidades e agressões sofridas por esta ilha verde rodeada pelo sertão agreste, ainda resistem e sobrevivem raras espécies vegetais e animais que só existem nessa área do planeta.
* * *
GUARAMIRANGA (Esperidião de Queiroz Lima)
Embalada nas matas colossais,
Repousa a irmã querida da alvorada,
Guaramiranga, a virgem coroada
Com flores de cafés e laranjais.
Ninho de amor à sombra dos rosais,
Onde vive a serrana a ser amada,
Mais feliz, mais ditosa que uma fada
Viveria em palácios ideais.
Linda flor, perfumosa violeta,
Que a nuvem, como enorme borboleta,
Beija, sugando o néctar que ela encerra.
Uma ponta de luz do Paraíso,
Que tombando, brilhante, num sorriso,
Se engastou, para sempre, aqui na terra.
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Houve um tempo em que os cafezais da Serra eram plantados a céu aberto, com belas floradas e grandes colheitas. Os pequenos arbustos brancos de flores ou vermelhos de cerejas formavam o encanto e a riqueza da nossa terra.
Muitos relatos da época dão conta de que era realmente um espetáculo de rara beleza, não só pelo perfume que emanava de suas flores, mas pelo contraste do verde das matas com a brancura das encostas onduladas dos morros, que delas se cobriam na época da floração.
Essa beleza “enchia de poesia o coração dos amantes e de amor a alma dos poetas”.
O irreverente escritor e poeta cearense, José Quintino da Cunha, fazia costumeiras visitas ao seu grande amigo e colega, Coronel José Marinho Falcão de Goes (meu avô paterno), proprietário do Sítio Pau do Alho, em Pacoti.
Certa noite, numa dessas suas visitas, enquanto o poeta contemplava embevecido, no alto do antigo e velho Sobrado, uma lua cheia e branca clareando os cafezais floridos, compôs o poema com o qual presenteou, como de costume, o seu anfitrião. O irmão do poeta, João Quintino da Cunha, colocou uma melodia nos seus versos, e os seresteiros da época recitavam e cantavam em serenata a COMUNHÀO da SERRA, o que evoca a minha infância quando minha mãe, cantarolando essa canção, me embalava, a mim e aos meus irmãos.
COMUNHÃO DA SERRA - José Quintino da Cunha (1875-1943)
Ontem, à noite, eu vi a minha Serra,
Como uma virgem, trêmula, contrita,
Recebendo de Deus, daqui da terra,
Uma hóstia do Céu, hóstia bendita.
Como foi para vê-la assim? De neves
Era o véu transparente, que a cobria,
Vendo-se aqui e ali negros tons leves,
Do negro que do verde aparecia.
Tons negros, talvez restos, que os comparo,
De alguma nuvem torva, esfacelada.
Por Deus, que só queria o Céu bem claro,
Porque ia dar a hóstia consagrada!
O cafeeiral, que rebentava em flores,
A grinalda na fronte lhe botava;
E o frio, rebento dos temores,
No seu íntimo, o frio rebentava!
Assim a Natureza era o sacrário,
De onde Deus dava a comunhão radiosa
À Serra! E era o Céu o grande hostiário
E era a lua, a hóstia luminosa.
E digam que eu não vi a minha Serra,
Como uma virgem, de grinalda e véu,
Recebendo de Deus daqui da terra,
A hóstia luminosa lá do Céu!
* * *
Considerações finais
Eu descendo das primeiras famílias que se estabeleceram e fincaram suas raízes na Serra de Baturité: os Queiroz e os Barreiras. Tive ainda o privilégio de pertencer à última geração de fazendeiros que viveram entre a Serra de Baturité e o Sertão de Quixadá e de Quixeramobim.
Muitas dessas histórias aqui relatadas, eu ouvi de pessoas mais velhas, de meus avós, de minhas tias, do Dr. Vinicius de Barros Leal, de minha mãe... mas, sobretudo de meu pai, José Ellery Marinho de Goes (Zelito).
Lembro bem, quando eu era criança e não entendia exatamente o que era esse ir e vir, da Serra para o Sertão, a diferença entre o que era SÍTIO e o que era FAZENDA.
E com muita sabedoria meu pai me ensinou:
“Sítio é um lugar para se plantar, e se cerca o que se cria;
Fazenda é lugar de se criar, e se cerca o que se planta.”
A HISTÓRIA, que é o maior patrimônio de um povo, acaba perdendo suas raízes e, enquanto antigos valores são substituídos pelos novos freqüentadores e proprietários da Serra, perdemos nossos vínculos com a terra que nos viu crescer e submergimos no anonimato de seus registros. Daí a razão desses escritos.
Claudia Maria Mattos Brito de Goes
Fonte de pesquisa:
1 – Esperidião de Queiroz, Antiga Família do Sertão.
2 – Esperidião de Queiroz Lima, Reminiscências (inédito)
3 – Vinicius de Barros Leal, História de Baturité.
4 – Francisco Tavares, Maciço de Baturité
5 – Francisco Tavares, Pacoti: Um pouco da história (Publicação local)
6 – Ana Maria Moreira de Souza, Quem Não Souber Ler Não Apague
Fotografias:
Janus Lonngren, Laura de Goes, Claudia de Goes
Texto, pesquisa e acervo fotográfico:
Claudia Maria Mattos Brito de Goes.